31.10.05

OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

"Chega um tempo em que não se diz mais: meu
Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos
edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação."

Carlos Drummond de Andrade

21.10.05

Darren Aronofsky's film

"If you want to find the number 216, you will be able to find it everywhere. When your mind becomes obsessed with anything you will filter everything else out and find that thing everywhere... 320, 450, 22, whatever!!! You've chosen 216 and you will find it everywhere in nature!"

Pi - Darren Aronofsky's film

19.10.05

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Antonio Cicero

13.10.05

O retorno

O cenário de uma rodoviária após um feriado é capaz de deixar qualquer um ensandecido. Pessoas que rodam de um lado a outro, desnorteadas, com apetrechos e malas entupidas de coisas muito além do que costumam precisar. Apressadas, tentando esgueirar-se o mais rápido possível entre a multidão de viajantes com parentes, amigos; todos com os rostos chorosos que costumam marcar as despedidas.

Como quase todas as pessoas que lotam a Rodoviária Tietê, na cidade de São Paulo, ela vagava entre os guichês à procura de uma passagem de volta para casa que, nesses momentos, sempre ganhava um aspecto ainda mais saudosista.

Boa tarde, eu queria uma passagem pro Rio?”, “Passagem pro Rio? Estão esgotadas”. A cena se repetiu algumas vezes até que ela, insistente, quase desesperada, ao se lembrar dos compromissos marcados para o seu retorno, tentou uma das últimas companhias. “Passagem pro Rio? Olha, a companhia colocou outro ônibus porque a procura está muito grande. Horário de 23:30...”. “23:30?! Mas são oito horas da noite?!”. O atendente do guichê olhou, impassível, para a incrédula compradora e acrescentou: “Olha, a senhora vai comprar ou não? A fila está grande, cheia de gente querendo comprar pra amanhã. E, quer saber, é a última desse ônibus...”. Vendo-se sem opções, ela comprou.

E agora? Seriam três horas e meia de espera. A primeira reação foi de perplexidade. Ela sentou-se num banco perto dos orelhões tentando “digerir” a idéia e planejar o que fazer. Um amiga tinha pedido para ela ligar avisando o horário da passagem, mas ela resolveu não deixá-la nervosa. Optou por um passeio pelo Shopping D, ao lado da rodoviária.

Mas como quase sempre ocorre durante uma longa espera, o tempo não passou e uma hora depois ela retornou para a rodoviária. A confusão de pessoas indo e vindo continuava, parecendo até maior. Gente saindo do metrô, gente saindo dos ônibus, chegando do feriado, gente pegando táxi, gente na fila do banheiro, gente, gente...

Cansada de andar, cansada de carregar o peso de sua mala, ela ligou enfim para a amiga, sentou na mala e ficou mais uma hora ao telefone, sem culpas pelo gasto, afinal, não era um interurbano...

Mais da metade do martírio de espera já havia passado e o cansaço já dominava o corpo. Resolveu comprar logo um novo ticket do metrô para o próximo retorno. A fila de compra, sempre enorme, consumiu mais uma meia hora... “Bem dizem que tempo é dinheiro...” – brincou.

Ela ainda entrou numa loja que sempre chamara a sua atenção, mas que nunca tivera “tempo” de olhar: Dinho Presentes. Comprou alguns souvenirs e seguiu para os quiosques da Praça de Alimentação. Após se conformar com o fato de que nenhum deles tinha coca light, comprou um suco, alguns biscoitos e sentou.

Os minutos finais ( seriam?) seguiam enquanto observava os apressados. 23:20. Quase como quem ia receber um prêmio, ela desceu até a plataforma número quatro.

Casais se despedindo, gente chorando, crianças sonolentas, lanchinho nas mãos, detector de metais na mala, entrega da passagem preenchida.... enfim, poltrona 22 do ônibus executivo de dois andares, horário especial; ao lado da escada. Adeus São Paulo. “E quem vem de outro sonho feliz de cidade, aprende depressa a chamar-te de realidade...”.

Oito horas depois, já acordada, ela avistou outra rodoviária na “cidade maravilhosa”: Novo Rio. Apesar do ônibus ser direto, devido aos congestionamentos, houve um atraso. Chegada enfim? Não. Engarrafamento de ônibus já antes da Rua Rodrigues Alves... Era a volta do feriado em outra grande cidade... Descanso? Imagina... Ela foi trabalhar com mala e tudo depois do feriado. Saltou do ônibus e viu gente, gente, gente... todos acelerados...

3.10.05

Cheiro de Morte

No ar, só sangue. Aquele cheiro de restos. Um breve piscar de olhos trazia aos ouvidos o gemido.

Uma dor profunda, quase um pedido de socorro. Um medo e um desnorteio. A tentativa de fuga. A sensação do embrulho no estômago e, de repente, aquele abandono. Como quem chora e desiste. Pronto, ali estava. Podia fazer o que quisesse com ele.

Dele, só a carne, só fisiologia, porque o espírito tinha voado numa lamúria sem dono. Depois, era só a matéria; vil, suja. Olhos esbugalhados, fixos, fitando aqueles que prejulgava como algozes; carapuça da raça-humana. E ali ficou, deitado. Nem água, nem comida, nem descanso, nem sonhos, nem vida.

Os olhos perdidos iam perseguindo, sem dó, nem perdão. E, por todo lado, era só sangue, era só aquele, aquele gemido. Eufemismo de morte, no rastro de liberdade...

Tigre, Tigre, Tigre; que assim seja!