O paciente chega. Já está cansado de médicos, de curativos, de letargia existencial. Quer, claro, o que não pode ter: rodadas de chopp, trilhas no meio de paradisíacos locais desconhecidos do resto do mundo, dança na chuva, baderna recheada de amigos, noites de salsa às sextas-feiras, quadras de tênis e bolas indo para lugar nenhum, sambinha gostoso de sábado, chorinho ao pé do ouvido, noitadas na Lapa... Paciência não é o seu nome!
Lê um livro, refúgio e acalento para uma existência sem prazeres e êxtases de movimento. Tenta se desligar dos papos sobre doença, sobre curativos, tudo que quer esquecer. Saramago o distrai. Nem ouve mais a torrencial chuva que cai sobre o lindo Rio de Janeiro. Sua vez, finalmente.
O médico, com um largo sorrigo, pede para ele deitar. O irmão, parceiro, acompanha. Já consegue deitar sozinho. Nervoso, talvez, não pára de falar.
O médico faz perguntas, olha o curativo, faz observações que o paciente vai, provavelmente, esquecer. Devia andar com um bloco, anotando tudo que as pessoas falam, mal da profissão....
Antes de tirar os pontos, o médico abaixa para abrir o armário. De repente, o paciente só sente a tesoura voando na sua perna. "Bom para distrair", pensa o personagem-paciente, não muito afeito a procedimentos ligados ao juramento de Hipócrates, pelo menos fora da teoria....
O médico fala, fala e ele também, responde, provavelmente falando sobre coisas que nada tem a ver com a situação: o médico deve achar que ele é louco. "Isso mesmo, continua falando, assim não presto atenção no que você está fazendo", pede o paciente. "Mas tirar os pontos não dói, dá só um nervoso", retruca o médico.
Ele olha o teto, deu para isso agora.... "Toda o dia a insônia me convence que o céu faz tudo ficar infinito"...."Agora vamos embora, estamos, meu bem, por um triz para o dia nascer feliz, o mundo acordar e a gente dormir".....
É, não doeu mesmo. Ainda olhando o teto, deitado, conversa. Vai se mudar e o médico, provavelmente apavorado, achando que o paciente louco vai fazer a mudança ele mesmo. Não, não, o irmão vai junto. "Onde andará aquele número de mudança", pensa ele. "12a casa em três anos e meio, sosseguei um pouco", brinca consigo mesmo.
"Me dê de presente o teu bis, pro dia nascer feliz, o mundo inteiro acordar e a gente dormir"..... Num rompante, distraído, pensando nos eventos do trabalho, nos amigos, levanta-se rapidamente e sente o incômodo. Quase se esquece o porquê de estar ali, o que acabou de fazer. "É estranho ficar conversando deitado", afirma.
Posso, não posso, posso, não posso, pergunta o paciente, repetindo as respostas do médico mentalmente. Ele se sente o garotinho aprendendo a ver horas: "mas por que não posso olhar no relógio digital?"..... Não pode fazer exercício, nada de impacto, não pode, não pode.... Verdade que ele nunca gostou da palavra não...
Mas ele já não é um garotinho, "comporte-se como um adulto", pensa ele, "pare de choramingar porque não pode fazer trilha, dançar e encher a cara com os amigos em loucas festas que terminam com o nascer do sol", radicaliza consigo mesmo...
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No carro, o irmão brinca: "olha, se eu não conhecesse o médico, se a cirurgia não tivesse feita, eu iria ficar preocupado. Ele virou para o lado, tacou a cabeça na luz. Abaixou para abrir o armário e tacou a cabeça nele. Quando subiu, deixou voar a tesoura. Quase achei que ele não estava enxergando! Se fosse antes da cirurgia, era capaz de te tirar dali"..... Família de gozadores, mas que, em seguida, elogiam o profissionalismo e detalhismo do médico.
Saber esperar, paciência, meio termo, virtudes e/ou necessidades na vida desse personagem-paciente-exagerado.
"Let's start all over again................This is saturday night, get loose.....My baby just cares for me"....
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