31.3.05

Personagem onírico

Um dia me falaram que as nuvens não eram de algodão, que o sabor do sonho não era doce, era inexistente; impossível. Que o céu era inalcançável; o limite. Insisti em acreditar nos mistérios da vida, mesmo sem entendê-los. E assim prossigo, perdida pelo mundo, mas descobrindo, aprendendo que, para mudar, é preciso quebrar paradigmas. Imaginar o meio-tom, 'ouvir o silêncio' e se questionar. Todos os dias.

24.3.05

Como anular um amor?

Não dar importância a coisas básicas como um 'bom dia', 'como você está?'. Esquecer de perguntar sobre aquele projeto tão importante, ignorar aquela crucial consulta ao médico, não perguntar sobre o concurso realizado, sobre o amigo doente, ou até mesmo da simples dor de cabeça.

É não ouvir o próximo. Não saber dialogar, expressar desejos e incompreensões. Guardar tudo para si mesmo com medo de se comprometer, de magoar. Ficar centrado em torno do próprio umbigo de problemas e esquecer que há um mundo ao redor girando sem parar...

Como anular um amor? É só esquecer que são personagens humanos. Cheios de desejos e problemas. Numa ânsia de percepção. Muitas vezes, necessitando apenas de duas palavras afáveis; um carinho para um coração carente DO ALGUÉM.

É só negligenciar presente em detrimento de escolhas e futuros impensados. Pensar tanto e esquecer de dizer, até mesmo de viver. Anular um amor é anular o amor-próprio e o amor ao próximo. Tornar o fútil, o inútil, o mais importante. É agir com cautela, educação e não com carinho, amor e preocupação.

Colocar o cérebro como trilha e mandar espontaneidade, sinceridade, para o 'buraco'. Ouvir conselhos e pensamentos lógicos. Próprios ou de outrem. Ignorar o apelo do corpo, da memória e da saudade... Personagens podem errar. E podem amar de novo. Mas algo se perde. Sempre... Mesmo que o momento passado...

Daniele Sorris

16.3.05

Fugaz

Demorar a voltar. Crise rala e insistente. Tempestade quieta. Coração mais desejos e sonhos. Voltar a ver o mundo ao redor. Além projeções de futuro. Sempre. Longe. Em (des) construção. Um personagem qualquer. Parado. Pensando. Em pé, no ônibus. Enxergou aquela senhora olhando pela fresta da porta. Um resquício de vida passando. A novidade. O contato com o mundo externo. Ainda que momentâneo.

-//-

Ela ali. Parecia ser um fio de vida. Costurando a memória e o hoje. Memória em cada um de nós que constrói o nosso atual. Também coletivo. Aquele dia. Aquela imagem ficou guardada.

E as idéias?! Os netos que ela devia amar. Cada um deles, atravessando o corredor-cérebro dela. Derrubando paradigmas. Trazendo a nova internet, os novos brinquedos, a nova “cultura”. E ela os amando.

O filho? Talvez ocupado demais para ir visitá-la. O marido, companheiro, lembrança para vida inteira. E agora podia ser só presença espiritual, por assim dizer.

Aquela, aquela imagem. Ela ali. Sentada. 'Percorrendo' toda uma vida. Sentido e brisa... Também o vento das novidades alheias. Pessoas que poderiam ter cruzado a vida dela. Ou não. Talvez os filhos daquelas pessoas.

Do lado de fora, em frente à casa da senhora, o ônibus do personagem, parado no engarrafamento, cheio de cotidiano para ela espreitar.

Não. Talvez ela olhasse o bar. A confusão. Jogo de cartas. Alguém derramando uma cerveja. Uma enorme mesa de sinuca. Aquele tecido verde, quase “reluzente”. E, bem no meio, um gato. Gordo. Branco. Esparramado. Talvez descansando também. Talvez lembrando da jovialidade. Também.

Ela e o gato “assim”. Em conjunção. À parte. O mundo à volta de um observador sobrevivente, que foi parte do mundo destes outros personagens nos segundos intermináveis de um engarrafamento. Na verdade, um gato gordo, uma senhora e um personagem sem nome no mesmo improvável instante.

Daniele Sorris

9.3.05

Persona

[ Este blog traz uma participação especial! O Personagem abaixo foi uma gentil contribuição de Leila Silva; professora, tradutora, escritora, 'nômade', entre muitas outras facetas. Leila é responsável pelo blog Cadernos da Bélgica, um verdadeiro garimpo cultural. Sejam bem-vindos a mais uma viagem... ]

Às vezes tenho que esforçar-me para lembrar de quem eu era. Tudo aparece confuso e nebuloso. Tantos clichês nos rodeiam. Quem era eu, quem fui, quem sou? Até aí. Não falo de outras vidas, dear baby, que essa já me basta. O tempo urge, cuidemos. Cuidemos desta que aqui está, efêmera e imperfeita.

Que mais tenho que lembrar? Ah, teve um ser chamado Nietzche que decretou que deus está morto. Poupou-me trabalho, mas não me disse quem Eu sou.

A espera sábia pode ser de rara beleza, mas você não acredita nisso. É verdade que no meu armário tenho várias máscaras, não nego. Cada uma mais bonita que a outra, dependendo do ângulo. Essa que porto agora é de cor invulgar. Percebeu? Levou anos para estar assim, com esta máscara tenho tantas habilidades que você nem imagina. Sei saltar de um século para o outro, já já lhe mostro. Tenho também uma toda branca, elegante e assustadora, de impossível decifração.

Um personagem simples, como tantos outros, que transita de dia pela cidade e de noite pela via-láctea. Um personagem bêbado de lucidez…Um personagem eu.

Às vezes tento me lembrar.

Por Leila Silva, 08/03/2005