16.3.05

Fugaz

Demorar a voltar. Crise rala e insistente. Tempestade quieta. Coração mais desejos e sonhos. Voltar a ver o mundo ao redor. Além projeções de futuro. Sempre. Longe. Em (des) construção. Um personagem qualquer. Parado. Pensando. Em pé, no ônibus. Enxergou aquela senhora olhando pela fresta da porta. Um resquício de vida passando. A novidade. O contato com o mundo externo. Ainda que momentâneo.

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Ela ali. Parecia ser um fio de vida. Costurando a memória e o hoje. Memória em cada um de nós que constrói o nosso atual. Também coletivo. Aquele dia. Aquela imagem ficou guardada.

E as idéias?! Os netos que ela devia amar. Cada um deles, atravessando o corredor-cérebro dela. Derrubando paradigmas. Trazendo a nova internet, os novos brinquedos, a nova “cultura”. E ela os amando.

O filho? Talvez ocupado demais para ir visitá-la. O marido, companheiro, lembrança para vida inteira. E agora podia ser só presença espiritual, por assim dizer.

Aquela, aquela imagem. Ela ali. Sentada. 'Percorrendo' toda uma vida. Sentido e brisa... Também o vento das novidades alheias. Pessoas que poderiam ter cruzado a vida dela. Ou não. Talvez os filhos daquelas pessoas.

Do lado de fora, em frente à casa da senhora, o ônibus do personagem, parado no engarrafamento, cheio de cotidiano para ela espreitar.

Não. Talvez ela olhasse o bar. A confusão. Jogo de cartas. Alguém derramando uma cerveja. Uma enorme mesa de sinuca. Aquele tecido verde, quase “reluzente”. E, bem no meio, um gato. Gordo. Branco. Esparramado. Talvez descansando também. Talvez lembrando da jovialidade. Também.

Ela e o gato “assim”. Em conjunção. À parte. O mundo à volta de um observador sobrevivente, que foi parte do mundo destes outros personagens nos segundos intermináveis de um engarrafamento. Na verdade, um gato gordo, uma senhora e um personagem sem nome no mesmo improvável instante.

Daniele Sorris

Um comentário:

Anônimo disse...

"O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis." Acho que é de Fernando Pessoa. Não sei por que razão lembrei dessa frase ao ler seu texto, mas deixo registrado. Bjos. Michelle.