30.12.04

Filhos

Estava numa pressa de voltar para casa. Só de imaginar a 'filha' sozinha...
Tão novinha. Desde que havia acolhido aquela coisinha miúda, sentia-se
tão responsável... Até voltava mais cedo da esbórnia.

E foi assim por meses. Até que, um dia, chegou em casa e viu a pequenina
entregue aos prazeres com o malandro. Um gato vizinho, garanhão, por assim
dizer. Estava fazendo a festa pelas varandas dos apartamentos do prédio. A
velha história da 'Dama' e o 'Vagabundo'. Ou das ex-'damas'...

E, num piscar de olhos, este personagem era dono de uma gatinha ( "Gosh,
minha filhinha, tão neném".) mais treze filhotes.

Doze se foram. Eram lindos, apesar do pai, como dizia este personagem. Um
era tão limitado, todo deformado, que ninguém quis.

Logo o filhote enjeitado não resistiu. Cheio de dor na alma, preparou um
'funeral'. Digno da filha de sua amada gatinha. Flores, cova preparada no
pequeno jardim, imaginava alguma espécie de ritual que marcasse este pobre
filhote, tão fugaz.

Ainda estava pensativo quando notou a aproximação de sua 'filha'. Nem bem
terminou o pensamento e percebeu que sua filha estava encostada no filhote,
já com o corpo inerte. "Coitadinha, vou deixar ela olhar para o filhinho,
deve estar sentindo, ou se despedindo".

Não terminou a frase e percebeu sua tão singela 'filha' abocanhando o pobre
animalzinho e... "Meu Deus"... arrancando um pedaço. Foi uma das pernas na
boca de sua filha.

De longe, ainda olhou aquele ser, 'inocente', sumir com o pedaço 'vil' na boca. E um olhar quase falante: "Deu trabalho para sair de linha,
agora vai voltar...".

Natureza. Natureza. Natureza. Apressou-se em enterrar o filhote. Melhor
assim...

27.12.04

Existo???

E o personagem tem passado muito tempo com a família.
Natal. Festejos (???). E o computador. Logo criam-se vínculos. Mais alguns. O maldito hábito.
Volta para o apartamento e uma mãe afoita pede: "Já sabe do ano-novo? Vai passar a semana lá?", "Não, não sei de nada...".
"Liga pra eu saber que você existe..."
Eu existo? Indago eu...
Só personagens...

Parem o mundo: personagens também amam!!!

Organizar uma viagem, marcando no calendário... Arrumar a mala uma semana antes. Todo mundo tem um momento ‘diferente’. Quando se age de uma maneira exatamente oposta ao habitual. Muito bom ser surpreendido em sensações novas!!!

Ademais, muitas expectativas e espera. E lá estava o personagem. Após uma viagem de quatro horas, sem sono, desperto, corpo ignorando o cansaço de semanas de insônia.

No ônibus, duas francesas perdidas. Ansioso, não sabia se ajudava, ou se corria para buscar o carro e chegar logo. Sabe lá o que significaria isso... Mas, a consciência pesou e foi ele, com o francês enferrujado, tentar dar informações de caminho. Au revoir...

Toca a campainha, pega o carro. ‘Almoço? Não, obrigado’. Mapinha em cima do banco, mas quase se perde; inacreditável. Estava procurando o tal do estacionamento que, no mapa, era em frente à pousada. Ficava na outra rua...

Tira mala, tira várias coisas do carro, parece que tem bagulho por tudo o que é lado... Alguém devia probir este personagem de arrumar coisas de viagem sóbrio...

E, num mágico instante, sonho vira realidade. Só interseção de vidas e desejos. Parem o mundo que eles querem fugir... ‘Para outro lugar, Baby’...

E parece que aí o silêncio poderia dizer tudo; aquele. Cheio de significados. Cheio de tudo. Um tudo poderoso, invencível, com amor, paz, vida... E a fome parece nem dar sinal de vida... Só paixão.

Uma pizza é até muito... São só olhares e palavras. Reais. Face to face. Criança grande demais querendo ir ao parque de diversões... Um cachorro, gaiato, malandro, seguindo feliz a felicidade do casal... Mesmo na praia injusta de quem não pode gritar ao mundo um amor... Mas ainda eram ‘só’ olhares e palavras. Reais. Face to face. Depois é so voltar pra ‘casa’. “ Et je t’aime aussi, mon amour...", responde o personagem…

O café da manhã parece tornar tudo ainda mais verídico. O olhar nos olhos. Quase um agradecer pelo mesmo ar respirado... “Quer um café?” soa quase como um cântico...

Depois é só andar e se perder. Ruas misturadas, confusas, como sentimentos. E quem quer saber onde está? Daqui a pouco se acha ou se perde em outro lugar... “E onde está a Livraria Cultural??? Ai, memória...”. Bom de qualquer forma, para sentar e conversar. Seja num banquinho, numa paisagem linda, numa companhia idílica, seja rindo, falando e, vivendo juntos, histórias de vidas separadas.

Um restaurante super romântico para variar. Músicas lindas, não muito altas. E sempre os olhares. As palavras que tanto os unem... A chuva não cessa, como num eterno passe de mágica... Logo a pousada. Dormir abraçadinho, dois corpos em um. Calor, aconchego; compreensão... E acordar num mar de calor e desejo... “Beija eu, beija eu, que eu prometo não gritar de prazer...

Outro dia que parece tão pouco. A vida lá fora é tão curta. Ao lado de um amor, mais intensa, tanta coisa para viver... Tanto do outro para conhecer. Arquipélagos de pinta, curiosidades de anatomia, aquele pescoço, o corpo, a alma sensível... Assim, nem dava para lembrar de camisa, ou passeio, tudo era só o amor de dois personagens em um...

Anda, anda, anda. Computador e realidade. Almoço e realidade. Anda, anda, anda. Beber caipirinha na beira d’água. Sim, personagens que querem ainda mais se beijar, enlouquecer em lábios finos, grossos, no corpo-encaixe. “Sorria, amor, exale ainda mais beleza. Conte sua vida, suas histórias, eternize um momento numa gargalhada. Ame-me mais e mais eu perco os limites; que limites???”.

Limite de acordar, nem querer dormir... Sentir o outro assim junto para nunca esquecer. Como guardar um cheiro??? Um esforço que ronda este personagem até hoje, numa tentativa de reproduzir outrem. Vêm o sorriso e os olhos brilhantes. E aquele rosto tão singelo, dormindo, que traz lágrimas aos olhos do personagem... Fecha os olhos e ali está, tão entregue, tão desnudo, na pureza de uma criança. Das crianças que sabem ser juntos... Viria mais um café da manhã... E o personagem queria pedir um, para eles dois, de novo, de novo e de novo...

Faz questão de levar o amor à rodoviária. Para mente registrar. O amor foi embora e o personagem ficou . Melhor analogia não há. As lágrimas vêm, poderosas, até os olhos. Que não escorrem, não cedem. A mente, intacta, consciente, não permite o transbordar de sentimento... E aquilo desce como um punhal, atravessando os planos que o personagem não fez, os sonhos que até teve medo de ter. Cortando até a certeza momentânea e inesquecível, que ilude em eternidade... Porque o personagem não pode ver seu amor chorar e alguém tem de ser forte...

21.12.04

Planeta Marte

- Táxi, táxi.
- Pois, não. Para onde está indo?
- Eu queria ir ao Planetário...
- Onde fica isso, ali perto dos bares?
- Não, o Planetário. Onde se pode ver o céu, as estrelas e os planetas...
- Planeta, que planeta?
- Planeta, como Marte.
- Mas você quer ir a Marte?
- Não, eu não quero ir a Marte. Eu quero ver Marte.
- Tudo bem então. Porque eu não sei ir para Marte. Mas onde fica este tal de Planetário?
- Ah, é logo ali, perto da universidade, perto do túnel.
- Ah, sim, do outro lado dos bares. Em Marte tem bar?
- Não sei, senhor. Creio que não.
- E as pessoas são legais?
- Não existe vida em Marte. Pelo menos conhecida...
- Como não? Eu vi outro dia na televisão.
- Ahn,..
- É, aquele cara fortão, de nome estranho...zweger.... Ele perseguia seres estranhos que tinham saído de um bar...
- Ah, sim. Mas aquilo é só filme. E se passa no futuro.
- E como que você sabe?
- Porque é ficção científica.
- O que é?
- É imaginação futurista, fazendo projeções de descobertas, inovações tecnológicas...
- Ih, eu acho que você está doidão. Quer saber? Acho que não existe planeta, nem marte, nem estrela, nada disso. Esta história de homem pisando na lua, para mim é tudo invenção de americano. Como é que você disse?
- Ficção científica.
- É, isso mesmo. É tudo ficção científica.
- Tudo bem, tudo bem, mas eu vou ficar no planetário assim mesmo...

Eu me senti muito tentada a fazer do meu personagem um habitante de Marte. Assim, o taxista podia saber, até mais do que nós, sobre Marte. E podia acreditar. Em Marte. Na lua. Nas estrelas. Em ficção científica. E em tudo que fosse sonho. Mas o personagem não sabia mais como explicar Marte. Planetas. Era uma linguagem tão natural para ele. Tão comum. Talvez o que ele precisasse mesmo era reaprender a falar com as pessoas. Para que elas ouvissem. E entendessem...

14.12.04

Carros...

Meu personagem é livre. Não posso esquecer. Não posso incorrer no erro do rótulo. Pode mudar a todo instante. Só tem de querer o bem.

Jaqueta de couro. Rebeldia. Estou insistindo no frio. Um carro. Qualquer um. Bonito. Arredondado. Pequeno para ser fácil de estacionar (ah, por favor, não impliquem, tanto fazia para personagem, pensei em mim então...).

E todo mundo pode ter um desses. Todos ganham o suficiente para alimentar os filhos, proporcionar educação e saúde e, pasmem, ainda dá pra comprar um carro bom novo. Pode ser modelo popular. Mas não tem que roubar nem vender a alma por isso. Meu personagem criou a fábrica dos carros acessíveis.

Está bem. Tanta coisa pra pensar e eu falo em carros acessíveis. Mas a culpa não é minha. Eu nem ligo pra isso... Mas carros representam o imaginário popular. Alguém me disse que, em sua família, quem tinha carro era considerado marajá. Num 'patamar bem superior'...

Então, não por isso alguém vai se destacar no mundo do meu personagem. Nele, todos tem um bom carro. Suficiente para ser útil. Jaqueta de couro é estilo, como se uma música anos sessenta tocasse no rádio...

Ah, isto deve estar chato. Lembro de um jovem dizendo: “mas não tem som, ninguém fala nada”. Nem sempre o que se fala é propriamente dito... Mas, realizemos esta vontade. Não sei por onde começar. Num outro capítulo talvez.

7.12.04

Enfim...

Enfim, ele ( personagem) está bebendo, num lugar aconchegante. Usando um lindo sobretudo. Eu não disse se é homem ou mulher, né? Acho que isso também não é importante. Não quando se trata de sonhos, desejos, realizações e percepções.

Meu personagem está 'sozinho'. Porém, ele sabe que as pessoas precisam de companhia. Amor. Didivir alegrias e tristezas. Está sozinho e sente falta de qualquer um. Quem quer que seja. Sente falta de caridade com os mendigos (desculpe, saiu. Não devia haver mendigos em sonhos...). Bom, então vamos lá, já foi...

Sente falta de solidariedade com as pessoas vivendo em favelas para todo lado. Pronto, lá se foi o frio e o sobretudo. Voltamos para o calor. Para o inferno da falta de oportunidade. A fome. A ausência de educação. E a violência como retrato de uma estrutura ausente...

Meu personagem quer ver a maldade, embora não entenda, como criança. Quer perceber que, mesmo no frio, há uma ignorância, uma anulação social. Está em toda parte. Nos ausentes “bom-dia”, nos preconceitos raciais, sexuais, na ganância, na inveja, na desconfiança, na omissão de socorro, de sorriso, de amizade...

Já não são mais azuis, os olhos querem ser brancos, de paz, de esperança.