27.9.05

Diário infantil de um personagem

Ai, Peposo. ‘Me leva’ de volta. Aqueles abraços sem fim. Tardes sem propósito, inconscientemente seguindo na direção do acaso. Sem questionamentos. Sem decepções quanto ao óbvio da humanidade.

Traz de volta aquela mente sem dúvidas. Em nenhuma busca desenfreada. Só o momento. Só o rir. Só o agora. Que infelizmente já é ontem...

Peposo, arraste-me contigo para os delírios pueris, os sonhos cheios de magia e ilusão... Leve-me hoje, arrastada, como eu, que te levava, abraçado, amassado, junto a mim como se fosse parte...

Máquina do tempo para a foto: o sorriso, bicho de pelúcia nos braços, um instante de felicidade despropositada. Aí se refugia o segredo da alegria...

Vamos assistir à televisão fazendo piquenique, na sala, com farinha Nestlé e Nescau... Dentro da casinha da Mônica... De pano... Vendo família Flinstones, He-man, Caverna do Dragão... As crianças perdidas...

Ah, as crianças perdidas... Acho que Caverna do Dragão é uma grande metáfora para o crescer. Quando a gente passa a ser “como nossos pais” e nos perdemos do simples, do óbvio, verdadeiro... Quando temos de abdicar da magia, dos poderes, do "unicórnio de nós mesmos"... A lenda da pureza, da lealdade...

Que farei hoje eu? Não posso abraçar e chorar com o Peposo... Ele não fala mais comigo, meu Teddy das cavernas e Tupiniquim... Não existe um Mestre dos Magos do mundo real...

Existem milhares de Vingadores na busca eterna pelos “poderes” das “crianças perdidas”... Cheios de tramóias, almejando “invencibilidade”...

Precisamos sair da caverna de nós mesmos! Deixar invadir a luz para ressurreição de sentimentos como lealdade, fraternidade; os eternos poderes do amor...

Vem, Peposo. Calado. Sujo. Desbotado. Olhos foscos e lábios sem cor. Vem. Você fala comigo sim... É só eu me reeducar para ouvir. Você e ao mundo. Vem...

21.9.05

Estilhaços de humanidade

A criança chora no sinal todos os dias. Olhos remelentos. Vestindo fome e desespero. O irmão mais velho, que nem é tão mais velho assim, vende doces.

Sabe aquela mendiga pedindo esmola todos os dias? Rodeada de cachorros, vestindo trapos, estendendo a própria mão... Logo ali na esquina...

A trocadora contando e recontando o mesmo troco, temendo o real que vai faltar na merenda dos filhos, se descontado. Aquela mãe que agoniza o filho preso, pouca idade, seduzido pelas oportunidades fugazes do tráfico.

Um despertador para realidade. Aquela da qual tanto se fala e pouco se vê. Indo para o trabalho, agenda lotada, o cotidiano esquece a agonia daqueles que “sobrevivem” ou vivem à parte da sociedade.

Mas o sinal abre. O telefone celular toca. E é o fim da “humanidade”. Ou o começo... em um longo dia de afazeres “produtivos”. A justificativa do salário no final do mês.

Tudo bem. Lar mais uma vez. Deveres dos filhos feitos. Comida durante o jantar. Televisão no jornal da noite. E mais um desabamento... Uma família que perdeu tudo. Uma? Uma apareceu na televisão, esvaindo em lágrimas do esforço de uma vida que se vai numa intempérie...

E a “digestão” continua... Mais um bombardeio, sabe lá onde no mundo... A mulher grita. Perdeu o filho, o irmão, o marido; todos civis. Enfim, tudo é guerra, não?

Desliga a televisão. Mas o “toque de recolher” na vizinhança 'concorda'. Tiros e mais tiros. Pessoas tentando se abrigar em lojas e atrás de carros; terror. Da janela, tudo se vê. Deve ser algum conflito entre traficantes e policiais.

Mas é melhor ficar “longe”. Antes que uma bala perdida alcance em cheio o resquício de humanidade. Só estilhaços, reais ou não, de uma estranha sociedade. Melhor não ver, melhor não ver...

Então vem o sono. Os projetos a entregar no dia seguinte. Um pesadelo da filha sendo assaltada. E a insônia, a insônia; todo meio acordado para a vida... Mas ainda vivo!

13.9.05

Continuu

Uma espécie de fixação por amor. Como as pessoas não duravam, o amor, apenas ele, persistia. E o personagem era projetado em cada sombra de identificação. Arrastada ao longo de amores, cada vez mais inalcançáveis.

E não é que não amasse. Era cada vez intenso. Mais autofágico também. Suicidava de amores em amores. Cultivando o velho hábito de enaltecer as qualidades de cada um, sobretudo, amar os defeitos.

Sabia amar cada vírgula. Conhecia o silêncio como ninguém. Enxergava a pureza em cada farpa do dia a dia. Entendia a natureza do próximo. Só não podia suportar a dor do amor sucumbir ao cotidiano. Este então lhe parecia a morte de sentido.

Tinha sido sim, muitas vezes, injusto com o possível. Tantas que perdera a conta... Não conseguia respirar o plausível, como se tivesse de salvar a si mesmo em cada estrada sem fim...

E tudo era amor demais. Ou falta de amor. Sem saber, não percebia que um não funcionava sem o outro. Não havia mesmo motivos para agir assim, de uma maneira ou de outra. Magoar alguém é que era o fim. Amava “de menos”, amava “de mais”, e lá estava: a incompreensão que parece mover o mundo. Como se a paz fosse o apocalipse...

Sem querer, ia arrastando paixões perfeitamente lunáticas, enquanto o bondoso amor-perfeito, assim, exagerado mesmo, carregado de obrigações, ia se tornando pesado; ele, pesaroso...

Muitos olhares antigos, entretanto, ofuscavam o pensamento. Ficava a dor de não poder continuar. Sim, correspondia sim. Amava todos os amores. E continuava amando, mesmo quem odiava sua intermitência existencial.

Quando alguém 'divorciava' então, vinha a culpa. O vinho que deveria ser mais saboroso, aos poucos, era efêmero. De um só gole, ele tomava suas certezas e parecia desistir na embriaguez-ápice. E quem queria ser 'certo', junto, chorava este furacão de busca contínuo...

Então ele derramava. Lágrimas daquele instante que nunca pode continuar sendo. Aquele, aquele, aquele que está por vir, o momento antes do orgasmo. Para ele, o resto persistia igual; a ressaca de todos os sentidos...

E se desculpava. Às vezes antes, durante, depois. Sabia no que não ia dar. Avisava. Sempre dizia. Mas o fato era que acreditava em pelo menos um momento. E porque acreditava neste momento, o momento, seria capaz de virar o mundo atrás dele. Se viesse mais rápido, mais rápido era o devaneio. Se custasse, mais instigante.

A arrogância era tanta, que nunca deixara de acreditar sem ter vivido. Nunca, nunca, nunca... Nunca não existe... Na verdade, uma vez o céu havia sido pouco pra sonhar. Sonhou, sonhou, até sorriu, guardou quimeras de instantes quase verdadeiros. Quase. Mas voltou. Literalmente. Azul? Passou a ser só blue... Uma saudade que, por si só já é intensa, pior quando poderia ter sido aquele, aquele momento...

E isso foi tão forte que até parou para pensar na continuidade de um agora mais calmo. Aceitando que não se pode pular de sonho em sonho, sugando alegrias e recordações-combustível. Nunca vivera este outro lado; quem fica com o não-vivido, não correspondido, como se não tivesse “sido” o suficiente. Talvez estivesse errado? Quem ia saber agora?

Mas não adiantava. Tentava, tentava. A estabilidade feliz, meta para muitos outros mortais, parecia um “expropriar” de tantos “eus” por vir... Um dia ia se esgotar. Talvez sim. Talvez não.

E ele chegou a querer. Ironias do destino, quase implorou. Bebeu da própria ausência e assistiu ao seu reflexo, no espelho de um outro alguém. Mas a palavra ainda não era 'agora'... Só restaram os cacos...

9.9.05

Maré

Será que um dia vou me lembrar?
Dos rostos que não fazem sentido.
Das vozes que não saem, perdidas.
Dos textos que não soube ler.

Do tempo que não seguiu.
Das palavras que passaram direto.
Do canto de lucidez.
E da verdade soprada aos prantos...

Será que um dia vou me esquecer?
Do destino que se foi.
Do corpo que se transformou.
E até do pó. Sem explicações...

Do gesto que não houve.
E da viagem que fez retornar.
Do doce amargo de certas vidas.
E do sonho esquecido ao nascer na praia.

Enxuga este piano de dentes.
Cada um, memória errante . Vacilante?
Não deixa a lágrima transbordar da mente.
Ópio enlouquecedor de melodias.

Raspa, recorta. Atira.
Fecha a porta. Resiste.
Até o resquício do fim. Para cima. Para baixo.
Mexendo para todo lado...

Nem sempre é tempo.
Ou paciência.
Nem único...

1.9.05

Inércia

Ao entrar no carro, mosquitos para todo lado. Um calor infernal. O prenúncio do verão. Malas no bagageiro. CDs esquecidos. Melhor seguir o rumo.

Algumas ruas, muitos carros. No cruzamento, esquerda ou em frente? Melhor esquerda. Todos os caminhos engarrafados, de qualquer maneira...

No final da rua, um sinal rápido. E a fila não anda... Bad choice. Bad choice.

Paulo Ricardo depressivo no rádio. Finalmente a vez; chegando ao sinal e virando para a direita. Entrei enviesada, o trânsito estava obstruído, não dava para ir mais com o carro.

Na confusão de automóveis, oriundos de todos os lados, meu olhar cruzou o dela. Ela estava num gol branco, que entrou ‘por fora’ do meu carro. Não sei quantos anos devia ter. O rosto era bonito e envelhecido. Magro. Dolorido. Parei, desconcertada.

Era um olhar pesado, triste. Numa fração de tudo ou nada, invadiu minha alma. Nunca havia visto a mulher na vida, mas tive o ímpeto de sorrir, dar um bombom. Porém, não tinha doces na bolsa e talvez ela não pudesse comer isso. No mesmo fugaz, porém interminável instante, corri os olhos pelo carro. Pensei em dar o meu boneco cachorro, que tanto amo, de olhos azuis, sempre balançando a cabeça, como quem canta uma animada canção...

Nestes longos segundos, o carro dela cruzou pela esquerda e sumiu no engarrafamento, na não fileira de carros paralelos. Ainda passei por alguns carros parecidos, 'mergulhei' a cabeça, para ver se encontrava, no banco do carona, aquela cabeça amarelada, raspada, provavelmente de quimioterapia. Nada vi...

E aquela angústia, num olhar tão penetrante, embora rápido, perseguiu-me por mais 40 minutos de engarrafamento.

Ela passou, deixou-me perplexa e levou sua dor. Nada pude fazer. É a impotência, a todo momento...