21.9.05

Estilhaços de humanidade

A criança chora no sinal todos os dias. Olhos remelentos. Vestindo fome e desespero. O irmão mais velho, que nem é tão mais velho assim, vende doces.

Sabe aquela mendiga pedindo esmola todos os dias? Rodeada de cachorros, vestindo trapos, estendendo a própria mão... Logo ali na esquina...

A trocadora contando e recontando o mesmo troco, temendo o real que vai faltar na merenda dos filhos, se descontado. Aquela mãe que agoniza o filho preso, pouca idade, seduzido pelas oportunidades fugazes do tráfico.

Um despertador para realidade. Aquela da qual tanto se fala e pouco se vê. Indo para o trabalho, agenda lotada, o cotidiano esquece a agonia daqueles que “sobrevivem” ou vivem à parte da sociedade.

Mas o sinal abre. O telefone celular toca. E é o fim da “humanidade”. Ou o começo... em um longo dia de afazeres “produtivos”. A justificativa do salário no final do mês.

Tudo bem. Lar mais uma vez. Deveres dos filhos feitos. Comida durante o jantar. Televisão no jornal da noite. E mais um desabamento... Uma família que perdeu tudo. Uma? Uma apareceu na televisão, esvaindo em lágrimas do esforço de uma vida que se vai numa intempérie...

E a “digestão” continua... Mais um bombardeio, sabe lá onde no mundo... A mulher grita. Perdeu o filho, o irmão, o marido; todos civis. Enfim, tudo é guerra, não?

Desliga a televisão. Mas o “toque de recolher” na vizinhança 'concorda'. Tiros e mais tiros. Pessoas tentando se abrigar em lojas e atrás de carros; terror. Da janela, tudo se vê. Deve ser algum conflito entre traficantes e policiais.

Mas é melhor ficar “longe”. Antes que uma bala perdida alcance em cheio o resquício de humanidade. Só estilhaços, reais ou não, de uma estranha sociedade. Melhor não ver, melhor não ver...

Então vem o sono. Os projetos a entregar no dia seguinte. Um pesadelo da filha sendo assaltada. E a insônia, a insônia; todo meio acordado para a vida... Mas ainda vivo!

2 comentários:

Anônimo disse...

E a nossa vida de "conto de fadas" continua...Um belo retrato da nossa triste realidade. Adorei! bjs

Laura_Diz disse...

É verdade, nas grandes cidades sobrevive-se assim.
bj laura